A Primeira Pedra
“Quem de
vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!”
Evangelho Segundo João - capítulo 8 v3,11
O título desta exposição é
inspirado na célebre passagem da Bíblia. Este episódio funciona como uma
metáfora, procurando demonstrar um conjunto de valores que servem uma crença
religiosa. Para este trabalho, interessou-me a forma como esta passagem
descreve um ato violento, inato ao ser humano, que o constitui como ser,
independentemente da sua crença religiosa. Atirar uma pedra a outrem, será
porventura o ato mais primário e universal que um ser humano tem para expressar
a sua revolta.
Arremessar uma pedra na rua,
é um gesto que vemos quotidianamente ampliado nas imagens dos telejornais,
sempre que existe uma manifestação em qualquer ponto do mundo. Numa Era como a
nossa com uma sofisticação tecnológica imparável, uma pedra é ainda um objeto
que está sempre disponível, pronto a ser disparado. Mas esta é também a Era da
informação planetária e os movimentos sociais de contestação estão hoje
baseados na internet e nas redes sociais. A comunicação é rápida, gerando
efeitos imediatos a uma escala global, sem precedentes.
Os trabalhos em pintura e
vídeo reunidos nesta exposição foram feitos sob a ideia de como o poder se
materializa e é contestado. Contudo, A
Primeira Pedra tem uma pretensão ensaística e analítica e não moral ou
ética. Não pretendemos indicar um caminho ou privilegiar qualquer forma de
conduta.
A exposição é composta por
uma pintura em grandes dimensões feita em papel (56 folhas de papel) que
representa um enorme penedo. Essa representação em pintura foi depois submetida
a um intenso apedrejamento. A ação, gravada em vídeo e exposta na galeria, ocorreu
na zona da Serra de Aire, local atualmente objeto de uma intensiva atividade de
extração de pedra calcária. Um dos locais onde se manufaturam as pedras da
calçada que vemos nos passeios lisboetas.
Justamente, o apedrejamento
foi feito com 56 pedras da calçada que fui encontrando nas ruas de Lisboa.
Estas pedras soltas, fora da comunidade das outras pedras, foram trazidas para
o ateliê, lavadas e preparadas. Foram fotografadas. Esse “retrato” individual
de cada pedra foi depois pintado a óleo numa das suas faces.
São mostradas ainda outras
duas pinturas. São paisagens de pedreiras. Estas pinturas documentam a extração
de pedras que ocorre atualmente. A exposição termina com uma pintura que
procura fazer a síntese da exposição: um fragmento de parede, no qual está
pintada toda a mise-en-scène da ação
do vídeo.
A Primeira Pedra é pois uma exposição de destroços. As obras apresentadas são o
resultado de um processo de embate violento, são o registo desse embate, e a
documentação em pintura de paisagem dos locais de onde provém as personagens
desta ficção. Estas personagens mostram-se na Galeria Má Arte, apresentam as
mazelas naturais de uma ação agressiva. Mas no final é a imagem que prevalece:
o penedo continua a poder ser visto nas 56 folhas de papel embora golpeadas e
amachucadas, e as pedras da calçada com as mazelas naturais de um embate, estão
outra vez alinhadas no chão, prontas a voltarem a ser disparadas. E a história
pode voltar a repetir-se.
Martinho Costa